06 dezembro 2010

cidade lisboa

a cidade acordou cedo, saem os defeitos, lá fora a velha louca fala sem parar, a sujidade. o rolar pelas ruas, a cidade rolou, o poço cada vez é mais fundo, o balde d'merda vazio, a corda, o vizinho fugiu, à vista ninguém, o riso, o choro, o padre a falar na avenida prostituída da vida, a água cheira a podre, as fezes nas sarjetas ensanguentadas, as escovas dantes varriam tudo, os pés sujos, descalços no alcatrão, refeições no refeitório selvagem, tudo podre, poeira, ar, e não perder nada da triste e vazia cidade.


entre algemas d'aço ouvi tantos gritos, fizeram, disseram e eram, conheci melhor ali tudo o que sou e senti, o cheiro aterrador tantos malditos diga esses.

e ninguém nos vem dizer adeus, e nunca mais voltes, esqueci-me de tudo e uma bebedeira foi a barreira.

no autocarro, no banco traseiro, vou sozinho no meio de tanta gente, é bom sermos heróis para nós próprios, esta é uma história d'uma viagem, tantas vezes senti perto de mim tanta gente só que naquele dia tudo foi diferente, não havia ninguém, seguia sozinho no autocarro, sentia-me dono de tudo era só eu que seguia, no entanto era estranho porque isto nunca aconteceu antes, não havia barulho de gente, nem cheiros de corpos suados de mais um cansado dia de trabalho para não sofrer, tantas vezes me enjoei disto tudo, de conversas só sobre a revolta e a miséria, estava tudo tão diferente e escuro, na minha cabeça uma visão violenta e um riso diabólico não me assustava, mas no fundo, no fundo estava com medo por ali estar sozinho, sentia-me desprotegido, mais esta maldita espera, o tempo, a milhares anos-luz, o pensamento, tanta miséria, arrepia, olhando lá fora, nada, chove, chove muito, maldita viagem nunca mais chega ao fim, o sangue é veneno e a água queima, sem luz tudo é desinteressante, tudo é humano, podre, a viagem terminou comigo a acordar com as batidas dum homem qualquer no vidro do autocarro, que não me lembro de apanhar em algum lugar.


Luís Paulo Meireles
in non nova sed nove, nº9, setembro 96

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