25 fevereiro 2011

estátua

há um corpo que revela a cor da estátua queimada. o conjunto dos homens. mácula.
é alguém que escreve versos num papel. circula entre a avenida d. carlos e a rua de s. paulo. tem o cabelo em plástico cinzento.
a sua língua pode ter um eczema. aventura-se sobre o tempo, vai acumulando as horas. este é um homem da minha existência.
recordo a sombra das mãos sobre o monte de papéis e sacos de plástico que vai arquivando nos degraus de entrada das casas.
fechado. eis como permanece o silêncio. olho-o, como que visse um comboio passando à velocidade do sexo.
ele vai delirando pelas ruas num compasso ditado pela luz branca. arrasta consigo o odor da paisagem.

quando o pássaro lilás apareceu, já tinha escrito sobre o seu voo. mas tinha remos e destinos libertinos.
meio nevoeiro meio cigarro, o café subia misterioso pela canção. o homem cantarolava sob as árvores. era a hora do repouso do corpo que amanhã voltará a mostrar a cor de estátua.
por entre duas folhas soletra algumas sílabas para que se possa ouvir. o ritmo vai-se perdendo nas pálpebras que fecham para a consciência  do mundo.
irrita saber que existe mundo.

quando as palavras surgem, o corpo suga nos poros o alimento.
junto ao bálsamo, às vezes, segura os restos de calor do sol e conserva-os pela noite dentro.
as sirenes vêm perturbar o calor das palavras que surgem em cimento. estilhaçam-se pelo cortejo de sonhos.
o homem queria ser verdadeiro, ter casa ou pelo menos fôlego. isso valeria um sorriso.

deixo para amanhã a escrita. agora observo constrangido o reflexo da verdadeira estátua na água suja do charco.
corro pela margem das escadas. começa aqui uma nova viagem, onde os ramos formam anéis que rodam sempre em volta da morte.
acho que é por isso que os cafés chegam ao fim de tarde e fecham. mas a água vai escrevendo sob a luz.
o pássaro lilás traz no bico galhos e areia para enfeitiçar o círculo interior do cérebro.

as alucinações repousam entre a comida e as ruas vazias. essa é uma área de livre acesso.
o fumo dos túneis jorra em direcção aos astros. é a fuga possível.
entre a arte e a morte pode, de facto, enraizar-se a estupidez. mas isso não acontece.
vou observando e permanece empregado do estado que encarna nas grutas e túneis para elevar a notícia. é que os passageiros do futuro beberão a água do frio.

o novo caderno traz na capa o retrato de antígona. é possível.
a tinta cai e borra a página branca.
permanece a dúvida da existência da arte. nova viagem.
os caminhos cruzam-se nas linhas de comboio. anunciam pelas ruas que amanhã o dia não será pago.



m. parissy
in non nova sed nove, dezembro 97

2 comentários:

  1. Wellitania Oliveira4.3.11

    "Alguém que escreve versos num papel" ganha a "alcunha" de poeta, só que o poeta vive o mundo, e só se livra das angústias que esse mundo provoca escrevendo com palavras.O texto em questão, faz a projeção do indivíduo no mundo contemporâneo. Aborda, por meio de antinomia, a construção do entendimento moderno no cotidiano humano. Traz a reflexão dos valores humanos contraditórios,porém tem como exclusividade a ambientalização na esfera da coletividade,apresentando um drama não só individual, mas, sobretudo, social. penetra fundo nas estrias sociais, sua teia de significados, a revolver "o conjunto dos homens", cujos "caminhos cruzam-se nas linhas de comboio", suas fundações de espanto, angústia e frieza faz permanecer "a dúvida da existência da arte" de escrever versos.

    Forte, muito forte!

    ResponderEliminar
  2. m. parissy6.3.11

    não tenho jeito para mergulhar assim no que escrevo. não sei. obrigado pelas palavras. aliás, eu estou é sem palavras...obrigado. m parissy

    ResponderEliminar