16 agosto 2011


PEQUENAS SETAS QUE AFASTAM OS OLHOS

1.
A manhã começa com o vento varrendo o pó da rua
e na varanda arrastam-se cadeiras algumas vozes determinam
as horas ou mesmo até a temperatura -- o dia vai ser tórrido
fragilizando mesmo o que resta ainda da nobreza dos cactos.
Revejo o mapa e tento localizar entre os rios e os longos carris
dos comboios o lugar. Entretanto outras vozes
adivinham não só o presente mas ainda o que o futuro será
se as marés derrubarem a escarpa frágil
e bela como um castelo rendilhado -- gosto da sua côr
adoçando o sol sobre o azul do mar -- na curva distante
entre rudes sombras as folhas agitam o caminham íngreme
é uma aragem brusca que faz rodopiar os cabelos e abrandar os passos.
Nesse lugar nada muda nem o tempo
e na realidade o que se observa é um inventário
de espantosas mudanças subtis. O que atrai o meu olhar
como um feixe de luz ou lâmina mistura territórios íntimos com paisagem
e mistério. A botânica é uma ciência de lucidez que conduz o tempo
e o conhecimento um vínculo de aparências e eu
recordo apenas com nitidez o nome
dela na camisa transparente.


2.
O mar ali ao longe desenha o que observo
aqui sentado uma imensidão insondável
e uma perda que os meus olhos
contemplam -- o mundo fica desfocado
e cresce impossível na duração do tempo
enquanto os barcos rumam na distância
exacta da minha miopia numa forma
insistente que atravessa os séculos
e nomeámos para chegar adivinhando
o que o desejo sulca e mistura
na boca como um rasgão -- as cores minuciosas
do lençol feroz das águas.


3.
As gaivotas adejam o branco alvo das suas asas na cal branca da casa.
As andorinhas abandonaram os ninhos insuspeitos. As árvores são tristes
no seu interminável esquecimento. Os muros queimam as sombras
vagarosamente. As flores silenciosas na sua plenitude absoluta
invadem o meu olhar. É frágil a turvação melancólica do céu.
Pequenos detalhes frívolos ameaçam este lugar moribundo.
Uma navalha infatigável rasga-me a memória e os dentes.
O estertor de um rio estilhaça a agonia do verão. Uma labareda
resiste nos meus dedos medindo o destino. Ou a tenaz vontade
de enganar a paisagem.


Jorge Velhote
non nova sed nove, abril 2011


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