04 novembro 2010

perdidos no mar

cena
é quando a perdição está em frente do coração, que os sentimentos vêm à tona. os homens da praia, envergonhados e tímidos, só revelam as suas desgraças quando se sentem insignificantes:
no meio do mar.

personagens

Ervilha, o mórbido
Esquim, o estérico
Sabita, o sarcástico
Mestre Vapor


(o chamador acorda à hora marcada e vai pelas ruas de porta em porta chamar a companha)

Sabita: Ah Esquim?! Esquim?! (pensa) Onde é que ele teve?...No centro da cultura na se passou nada e é só pa quem sabe ler! (volta a chamar o camarada) Esquim?!

Esquim: Quem é?

Sabita: Agora quem é?...É o chamador. Vem até lá baixo com Deus, na te esqueças.

Esquim: Vou já.

(o chamador segue pelas ruas fora até à casa do Mestre Vapor)


Sabita: Mestre Vapor?

Mestre Vapor: Quem é?


Sabita: É o chamador. Vamos até lá baixo com Deus.


(agora, à porta da casa do camarada Ervilha)


Sabita: Ervilha? (espera e não obtém resposta) Este é sempre o mêmo. Por sua vontade nunca íamos ao mar...e na tem menher, imagina se tivesse. (chama de novo) Ervilha? Ervilha?


Ervilha: Quem é?


Sabita: É o chamador. Vem até lá baixo com Deus. Na te esqueças !


(a companha depois de se juntar começa a varar o barco à água)


Mestre Vapor: Remem p’ó norte que é raso certo. Endiretem o barco. Avante que vem lá mar...na partem o remos, senão é morte certa.


Sabita: O diabe que seja surdo e mouque.


(já a navegar)


Mestre Vapor: Arremar os remos e pôr a vela que já temos em águas do Senhor.


(em alto mar e depois de várias horas a pescar)


Esquim: Parece que o tempo vai medar?!


Sabita: Na parece. (olha p’ró céu) É que tá mêmo. Na falaste à pouco no diabe?!...Temes aí ele. Ele é surdo mas não é mouque! O que dizes a isto Ervilha? Achas que o navoeiro passa-se p’as abertas...


Ervilha: P’as abertas ou p’as tapadas, sei dizer que à bocade táva na cama e agora tou numa alhada.


(o mar começa a ficar revolto)


Mestre Vapor: Camaradas, tirem as botas e preparem-se p’ó pior. O transmisor avariou-se, agora é que tá tudo tapado! Saquem as boias.


Esquim: Ai Nossa Senhora dos Aflitos que nos acuda.


Sabita: Atão, não acreditas no Pai-Nosso e agora já rezas Avé-Maria?!


Esquim: Não acredito em Deus mas também não acredito no Diabe. (vem-lhe à memória a mulher) Ai a nha Maria, tanta porradinha que levava, era de meter dó...cada dia da semana era uma perrada diferente. Uma vez orinou-se toda... aí ganhei medo. Não era que ela morresse, era por eu ir preso. O que me valeu foi ter pecebide mal. Era que a nha Maria tinha-lhe dado vontade de orinar. Às vezes, só pa implicar com ela, mal chegava a casa perguntava com voz de horror «Olh’à Maria, se tás a cozer massa é melhor cozeres arroz». Passados uns instantes a nha Maria levava arroz por todos os lados, era de meter dó. O mês meninos, coitados, desatavam a chorar agarradinhos à mãe. O do meio...o mê Miguel, via-se que tinha future, dizia-me tantas vezes «Voçê quand’ for velho, ninguém quer saber de si». Mas a culpa não era minha...porque é que me escondiam a garrafa do vinho?


Ervilha: À Esquim vê se calas a boca que me tás a meter medo c’o tês remorces. À cinco dias que na durme, só a pensar na órrechada que dei na solteirona da nha tia! (e vai contando a história) Logo de manhã põe-se à janela. Quem passa por alí, diz logo «Olha, lá tá a galinha da coisa de oira, depois põem-se a orinar de frente. Ela até estica-se toda e trosse o bescoço pa ver se chega lá mais depressa c’os olhos». Isto à janela, imagina isto à porta. Passa aí o garrafão da água.


Esquim: Acabou-se a àgua. Foi a últ’ma.


Ervilha: Temos tramados, ainda mais esta. Resta esperar p’água da chuva!


Sabita: Esperemos que sim. Não é só p’á terra que dá chuva.


Ervilha: Já aí vem. Ergue o garrafão.


(ouvem-se uns barulhos)


Esquim: Ò Mestre Vapor?! Na tá a ouvir nada?

Mestre Vapor: A ouvir tou. A ver é que nada! E cada vez tá mais p'la proa...seja o que for.

Ervilha: Uma carroça é que na deve ser.

Mestre Vapor: Almas na terra só enterradas. No mar só aboiadas. Se tudo tem alma, nhuma é mais forte qu’a minha. Deve ser um barco mederne?! Com este navoeiro cada vez vê-se menos. Mantênham-se calmos...e p’sim ò p’não despecem-se uns dos outros. (mas depois do outro barco os avistar...) Camaradas, barretes ao mar...ainda na foi desta que merremos!

Manuel Carvolha
in as origens correm sempre na veia
non nova sed nove, lisboa, 1996

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