08 novembro 2010

NA TERRA DO NÃO SONO

Na terra do não sono não é facultada aos habitantes a visão da própria sombra de cada um. O Sol nasce e põe-se como em qualquer outra terra, e naturamenete a luz dele irradiada produz sobre todos os corpos a natural sombra. Contudo na terra do não sono a visão de cada habitante não pode entrar em contacto com a sombra dele próprio, como aliás já se disse.
Todo o habitante que olhe a própria sombra será deportado para a terra do não sol, onde a ausência de luz torna aí o mundo numa única e enorme sombra, num escuro absolutamente impenetrável, pelo que muitos habitantes deportados são levados a arrancar os próprios olhos, dada a sua dispensabilidade.
Na terra do não sono, para evitar olharem a própria sombra, os habitantes vêem-se obrigados a estar sempre voltados para a direcção oposta à que o Sol projecta a sombra. Pelo meio do dia os raios de sol formam uma perpendicularidade perfeita em relação à terra do não sono, pelo que dessa maneira, com a luz a bater de cima, os corpos ficam isentos de sombra. É nesse momento exacto que os habitantes devem mudar de direcção.
Por isso de manhã se vêem todos os habitantes a caminhar ou sentados de frente para nascente, e de tarde todos de frente para poente.
A visão da sombra de outro habitante que não o portador dos olhos que a estão a ver é por enquanto infensiva. Mas corre o rumor de que virá o tempo em que ver a sombra de outrém terá as mesmas consequências que ver a própria. Nesse tempo os habitantes terão de manter entre si a distância necessária para não verem as sombras uns dos outros, e já se pergunta onde se há-de arranjar todo esse espaço, se é tão pequena esta terra.
Todos os dias muitos habitantes são deportados para a terra do não sol. É que mesmo sem estarem voltados para a sombra, por vezes e sem querer podem vê-la. Principalmente nas horas perigosas, as que estão perto do meio do dia. Nessa horas a sombra do braço que se adianta ao corpo, no movimento natural do caminhar, pode aparecer à frente dos olhos, se estes vão baixos. É fatal.
Um dia um habitante lembrou-se de mudar de direcção e teve e ideia de se abrigar à sombra de uma árvore alta. Aí não chegaria a luz que projecta a sua sombra, pensou. Os outros habitantes ficaram perplexos ao verem-no andar de lado, dirigindo-se à árvore alta. Nunca ninguém na terra do não sono tinha ainda andado de lado. Quando alcançou a sombra da árvore alta virou-se e pela primeira vez viu demoradamente o rosto dos outros habitantes, e os outros habitantes pela primeira vez viram, com demora, o rosto de alguém.
E teve vontade de caminhar na direcção oposta à que devia tomar àquela hora. E começou a andar por cima da sombra da árvore com a natural emoção de quem nunca tinha andado por cima de tão grande sombra. Até aí, apenas caminhara em sombras de outros habitantes, que não eram nada de extraordinário. Mas a sombra da árvore acabou e do recorte curvo da copa começou a surgir uma sombra de cabeça e depois de ombros e de tronco e quando o habitante percebeu que era a sua sombra já a tinha visto, como é de esperar.
Saiu-lhe cara a vontade. Vieram as autoridades. Três autoridades, dada a gravidade da infracção e o insólito do caso.
As autoridades concluiram que a punição não se poderia limitar à simples deportação, e decidiram punir o habitante à vista dos outros, para servir de exemplo.
O habitante está parado com as autoridades a rodearem-no, os habitantes que estão à sua frente, que vão fazer de público, estão parados também, e os outros, que seguiam à frente no momento do delito, não deram por nada e continuam a caminhar. As coisas na terra do não sono acontecem muito silenciosamente.
Enquanto não começa a punição o habitante deleita-se a olhar a sua sombra. Já que vai ser punido tenta retirar todo o prazer possível da infracção cometida. As autoridades ainda discutem entre si os pormenores da punição a aplicar ao habitante. Informe-se que as punições na terra do não sono baseiam-se na récita de lengalengas. Pretende-se com isso fazer adormecer o arguido, pois cair no sono é a pior coisa que pode acontecer a um habitante da terra do não sono. Pior ainda que ser deportado. A punição começa, com uma das autoridades a recitar, era uma vez num reino distante, etc.
O habitante estranha a sensação de ouvir. O som, tal como o sono, é raro nesta terra. O habitante, por instinto, inquiriu todos os seus sentidos, procurando o correcto para receber a sensação e decifrar a mensagem. Os olhos não, nem o tacto, nem o olfacto, nem o gosto É o ouvido. Percebeu agora que lhe estão a recitar uma lengalenga. Mas é tarde demais, já não pode deixar de ouvir. Entorpeceu e caíu no sono, a mais terrível coisa que pode acontecer a um habitante da terra do não sono, pois por algum motivo haveria esta terra de receber este nome.
Nem de noite os habitantes dormem. Ficam sentados á espera do Sol.

Ramiro du Roc
in Contos
non nova sed nove, março 1996

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